Sunday, May 14, 2006

II
G U
E R N I C A
(continuação)

(Ouve-se cair mais caliça.)

Fanchu – Magoaste-te? (Silêncio) Que te aconteceu? Diz qualquer coisa. Magoaste-te? Magoaste-te, a sério ?

Lira – Sim. Caíram pedras no meu braço. Está a deitar sangue.

Fanchu – Está a deitar sangue?

Lira – Sim.

Fanchu – Muito?

Lira – Sim, muito.

Fanchu – É uma arranhadela ou uma ferida?

Lira – Uma arranhadela, mas cheia de sangue.

Fanchu – Vou buscar algodão.

(Fanchu procura. Remexe nos escombros, mas cai cada vez mais caliça. Deixa de procurar. Regressa e torna a subir para a mesa.)

Fanchu – O armário ficou debaixo dos escombros. Não chores. Põe um pouco de cuspo no braço e depois põe o lenço por cima.

(Entram pela direita o jornalista e o escritor. O jornalista traz um bloco. O escritor, curioso, dá uma volta em redor de Fanchu e examina-o atentamente. De repente, pára um instante no meio do palco.)

Escritor – Acrescente que estou a preparar um romance e talvez mesmo um filme sobre a guerra civil de Espanha.

(O escritor e o jornalista dirigem-se para a esquerda.)

Escritor – Este povo heróico e tão paradoxal, no qual se reflecte o espírito dos poemas de Lorca, dos quadros de Goya e dos filmes de Bunuel, prova-nos, nesta guerra atroz, a sua coragem, a sua capacidade de sofrimento e...

(0 escritor e o jornalista saem pela esquerda. A voz do escritor perde-se ao longe.)
Fanchu – Sentes-te aliviada?

Lira – Um pouco. (Pausa) Mas não muito.

Fanchu – Queres que te conte uma história para que te não doía mais?

Lira – Tu não sabes contar histórias.

Fanchu – Queres que te conte aquela da mulher que estava na retrete e que ficou sepultada debaixo das escombros? (Pausa) Não gostas dessa?

Lira – Dói-me muito.

Fanchu – Vais ver. Isso vai passar. Vou fazer de palhaço para te fazer rir.

(Fanchu dança desajeitadamente e faz toda a espécie de caretas. Depois desata a rir.)

FanchuGostaste?

Lira – Não consigo ver-te.

(Ruído de aviões. Bombardeamento. Durante este intervalo, uma mulher e a filha atravessam o palco com um ar irritado e impotente. Vide o quadro de Picasso -Termina o bombardea­mento.)

Fanchu – Não te aconteceu nada, minha gatinha? (Longa pausa)

Lira – Querido, sinto-me muito mal. Vou morrer.

Fanchu – Vais morrer? (Pausa) A sério? Vais morrer? Queres que previna a família?

Lira – Que família?

Fanchu – Não é assim que se diz?

Lira – Nunca te hás-de lembrar de nada. Já te esque­ceste de que já não temos família.

Fanchu – Olha! É verdade. E o Zèzito?

Lira – (Perde a paciência) Mas onde tens tu a cabeça? Já te não lembras de que foi fuzilado em Burgos?

Fanchu – Não podes dizer que é culpa minha. Bem te tinha dito que não queria rapazes. Um belo dia, há uma guerra e... morrem. Se tivesse sido uma rapariga, agora tudo estaria bem, cá em casa.

Lira – Lá estás tu. Sempre a ralhar. Não tenho culpa disso!

Fanchu – (Meigo) Meu amorzinho, não te zangues, não queria magoar-te.

Lira – Nunca tens pena de mim.

Fanchu – Tenho. Se quiseres, quando saíres daí, vou fazer­-te outro filho, para te provar que não sou rancoroso.

Lira – Mas já não podes.

Fanchu – Isso, agora diz que não sou homem.

Lira – Não é isso, mas já não podes...

(continua)

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