Tuesday, May 16, 2006

IV
GUERNICA
(continuação)


(O balão sobe e desce.)

Fanchu –Estás bem?

(O balão sobe e desce.)

Fanchu – Fala (longo silêncio). Não me queres dizer nada? Estás zangada comigo? Não tenho culpa. (Pausa) Se só dependesse de mim... (Pausa) Não fui eu quem destruiu as casas. (Satisfação) De resto não apanharam a árvore. (Repentina­mente) Ficaste zangada para sempre? (Silêncio) Estás zangada até à morte? (Silêncio) É assim que tu gostas de mim? Está bem! Faz o que quiseres! (Olha resolutamente para o outro lado com desprendimento. Cruza os braços) Ouviste o que te disse? Faz como quiseres. É-me indi­ferente. (Pausa) Depois não me venhas dizer que sou eu que começo e que tenho mau génio. Desta vez a coisa é clara, eu não te fiz nada. És tu que não me falas. Eu bem te percebo. Começaste por dizer que naquele sábado não consegui e, agora, recusas-te a falar. (Pausa) Nem ao menos queres mexer o balão?

(Fanchu volta-se e olha. O balão sobe e desce devagar.)

Fanchu – Ah, Sua Excelência não pode falar, sua Exce­lência está fatigada, sua Excelência apenas se digna agitar o balão? Está bem, ficas a saber que não me magoas, diz qualquer coisa. (Longo silêncio) Está bem !

(Retoma o ar zangado. Olha para o outro lado, cruzando os braços. Pela direita, entram o escri­tor e o jornalista, que continua a trazer o bloco.Fanchu, assustado, refugia-se debaixo da mesa. O escritor fareja-o. Examina-o de todos os ângulos e impede-o de se mexer.)

Escritor – Como este povo é complexo e sofredor! Escreva isso. Diga antes que a complexidade deste povo sofredor floresce de forma espontânea numa guerra fratricida e cruel como esta. Nada mal, hein? Não, não. Suprima essa frase. É demasiado enfática. É preciso encontrar algo de definitivo, sim, hei-de encontrar...

(Fanchu continua estendido no chão, assustado, debaixo da mesa. O escritor e o jornalista saem pela esquerda. Ouve-se a voz do escritor que se vai perdendo ao longe.)

Escritor – Que romance vou fazer de tudo isto. Que roman­ce! Ou talvez uma peça, ou mesmo um filme. E que que filme!

Lira – Com quem estavas a falar?

Fanchu – Sua Excelência tornou a encontrar a língua. Deixou de ser muda. Pois bem, ficas a saber que sou eu agora que não quero falar.

Lira – Meu querido, estou muito mal. Sinto-me muito mal. Não tens pena de mim!

Fanchu – Que se passa? Estás doente?

Lira – Mas tu não vês que estou coberta de pedras e que não me posso mexer?

Fanchu – Já me tinha esquecido.

Lira – Tu nunca te lembras de mim.

Fanchu – Tens razão. Devia dar um nó no meu lenço.

Lira – Que seria de ti, se eu não existisse? Tens tão pouca cabeça.

Fanchu – Já estou farto de te ouvir dizer isso. Pois bem, vou arranjar outra. Ainda sou capaz de con­quistar uma mulher, sabes? Se visses como a padeira olha para mim, todas as manhãs, quando vou buscar o pão.

Lira – (Zangada) Pois é. Agora enganas-me com a primeira serigaita que encontras. Eu sabia per­feitamente que não podia ter confiança em ti.

Fanchu – Ela é que olha para mim. Eu cá nem lhe ligo.

Lira – (Zangada) Isso é o que tu dizes. Gostava de te ver.

Fanchu – Não fiz nada, juro-te.

Lira – (Zangada) Mais uma das tuas juras. Também juraste levar-me em viagem de núpcias.

Fanchu – E continuo a pensar nisso. Logo que a guerra acabe, havemos de fazer uma viagem. Hei-de levar-te a Paris.

Lira – (Zangada) Claro, a Paris. O cavalheiro quer divertir-se.

Fanchu – Vês como tu és! Nunca estás de acordo comigo.

Lira – Ai! Caem mais pedras em cima de mim.

Fanchu – Doeu-te muito? Ah! é realmente aborrecida esta coisa da guerra.

Lira – Faz uma coisa por mim.

Fanchu – O que queres?

Lira – Chama um médico.

Fanchu – Levaram-nos todos.

Lira – Mais vale dizeres que não queres fazer nada por mim .

Fanchu – Não te apercebes de que estamos em guerra?

Lira – Mas nós não fizemos mal a ninguém.

Fanchu – Isso não interessa. E depois dizes que sou eu que me esqueço de tudo. Tu já te esqueceste de como as coisas são.

Lira – Podiam muito bem abrir uma excepção para nós, que somos velhos.

Fanchu – Que é que tu julgas?... É um caso sério a guerra. Vê-se logo que não tens instrução nenhuma.

Lira – Pronto, agora insultas-me. É melhor dizeres que já não gostas de mim.

Fanchu – (Terreamente) Meu amorzinho, eu não te quis ofender.

Lira – Não quiseste ofender mas ofendeste. Como tu mudaste. Dantes trazias-me nas palminhas.

Fanchu – E agora tu também.

Lira – E essa história da instrução? Achas que não tenho amor-próprio?

Fanchu – Mas eu só disse isso por dizer, sem intenção.

Lira – Então retira o que disseste.

Fancho – Retiro o que disse.

Lira – Sem segunda intenção?

Fanchu – Sim. Juro.

Lira – Juras sobre quê?

Fanchu – O costume.

Lira – Está bem. Espero que não voltes a fazer isso.

(Uma pausa)

Fanchu –Não podes tentar levantar-te para sair?

Lira – Mas, logo que me mexo, as pedras começam a cair.

Fanchu – É preciso fazer qualquer coisa.

(continua)

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