Friday, May 19, 2006

VII

GUERNICA
(continuação)

Lira – Porque é que demoliram a casa?

Fanchu – É preciso repetir sempre a mesma coisa (Mar­cando todas as sílabas) Então a experimentar bombas explosivas e incendiárias. Depois, dizes que sou eu que não tenho cabeça.

Lira – E não podiam experimentá-las noutro sítio?

Fanchu – Julgas que é assim tão fácil? Era necessário experimenta-las numa povoação.

Lira – Porquê?

Fanchu – Vais dizer que estou a fazer troça de ti, mas bem vês que não tens a menor instrução. Por­quê? Porquê? Para que queres que seja senão para ver se as bombas funcionam?

Lira – E depois?

Fanchu – E depois? E depois? Estás a fazer de parva : se a bomba mata muita gente, serve e fabricam mais; se não mata ninguém, não presta e não fabricam mais.

Lira – Ah!

Fanchu – É preciso explicar tudo.

Lira – (Zangada) Não percebo porque é que levas a mal: sei muito bem que não tenho tantos estudos como tu.

Fanchu – (Inchado de orgulho) Sei tudo, hem? Poderia parecer, realmente, que andei na Faculdade. (Uma pausa. Tem ar satisfeito e surge-lhe uma boa ideia) Poderia passar por um professor, não?

Lira – (Aborrecida e céptica) Claro, com certeza.

Fanchu – Achas, na verdade?

Lira – Claro.

Fanchu – Assim, serias mulher de um professor. Na rua, as pessoas diriam ao ver-nos: «olhem para os professores» (Uma pausa). Poderíamos fazer­-nos valer: teríamos cartões de visita e assis­tiríamos às conferências. Só me falta o guarda­-chuva. De resto, tens muita instrução : com tudo o que leste na retrete!

Lira – Lá vens tu, outra vez!

Fanchu – Não estás de acordo?

Lira – Nós professores?...

Fanchu – Nunca estás de acordo com as minhas ideias. Foi sempre assim. Pois bem ! Se recomeças, vou-me embora para sempre. (Com ar irritado) Não quero que vivas com um homem que diz asneiras. Adeus !

(Fanchu agacha-se e faz barulho em cima da mesa para fazer crer que se vai embora.)

Lira – Querido ! Deixas-me sòzinha ?

(Lira queixa-se. Fanchu está imóvel e continua acocorado.)

Lira – Era a brincar. (Uma pausa) Bem sabes que te admiro muito. (Longa pausa) Davas um pro­fessor. (Uma pausa) Quem te ouve falar pen­sará que és capitão ou até antiquário.

(Longo silêncio. Fanchu parece orgulhoso.)

Lira – Meu querido! (Uma pausa) Deixas-me sòzinha ? (Uma pausa) Anda! (Pausa longa. O mesmo jogo.)

Lira – Ai, ai. (Chora) As pedras recomeçaram a cair.

Fanchu – (Levanta-se ansioso) Que te aconteceu, meu anjo? Estás ferida?

Lira – Vou ficar completamente soterrada. E é este o momento que escolhes para te ires embora. Não tens coração.

Fanchu – És tu quem começa.

Lira – Estava a brincar.

Fanchu – Jura que não tornas.

Lira – Juro.

Fanchu – Juras por quê?

Lira – Como de costume.

Fanchu – Sem reservas?

Lira – Sim, sem reservas.

Fanchu – Está bem. Espero que não recomeces.

(Bombardeamento. Ruído de bombas e de aviões. Entretanto a mulher e a filha passam da direita para a esquerda puxando um carri­nho de mão cheio de velhas espingardas. Pára o bombardeamento.)

(continua)

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