Monday, May 15, 2006

III
G U E R N I C A
(continuação)

Fanchu – Já não posso. És a única a dizê-lo. Já te não lembras daquele sábado?

Lira – Que sábado?

Fanchu – Que sábado há-de ser? Vais esqueceste ?

Lira – Começas outra vez a gabar-te?

Fanchu – Não me estou a gabar. É a pura verdade, mas tu não queres reconhecê-la. (Pausa) Lira – (Ansiosa) Vai ver outra vez se eles deitaram a árvore abaixo.

(Fanchu desce da mesa. Dirige-se para a janela-. Abre-a. Por detrás dela, aparece um oficial. Olham-se detidamente. Fanchu baixa a cabeça, com ar receoso. O oficial ri, sem alegria, en­quanto, com o dedo, faz girar as algemas.Fanchu, de cabeça baixa, fecha a janela. Regres­sa com ar assustado. Volta para cima da mesa.)

Lira – Então? (Pausa) Então? Continua de pé?

Fanchu – Não sei !

Lira – Não sabes ?

Fanchu – Não pude vê-la.

Lira – Pois é, estou aqui incapaz de sair, só te peço para veres se deitaram a árvore abaixo e tu não queres fazer isso.

Fanchu – Não pude.

Lira – Está bem, como queiras !

(Fanchu desce da mesa. Aproxima-se da janela, a medo. Abre-a com ansiedade. Olha para fora. Volta para cima da mesa. Ergue-se na ponta dos pés, com ar satisfeito.)

Fanchu – Está de pé.

Lira – Bem te tinha dito. (Pausa) Mas ajuda-me. Não me deixes só.

Fanchu – Que queres que eu faça? Não descobres nada? Como tu mudaste. Bem se vê que já não gostas de mim.

Fanchu – Claro que gosto, minha gatinha. Tenta levan­tar-te, estica o braço, vou tentar agarrá-lo.

(Fanchu estica-se o mais que pode e estende o braço em direcção aos escombros. Enquanto Fanchu tenta agarrar a mão de Lira, o oficial entra pela direita. O oficial olha para Fanchu, que está de costas para ele.)

Fanchu – Faz um esforço. Estica-te um pouco mais para eu o agarrar. Mais um bocadinho. Isso ! Isso !

( Fanchu está na ponta dos pés. O oficial empur­ra-o para trás e fá-lo cair. O oficial sai imedia­tamente pela direita. Fanchu estica-se penosa­mente. Olha para a direita. O oficial aparece à janela. Ri, sem alegria, brincando com as alge­mas. Fanchu olha a medo para a janela. No momento em que os seus olhares se cruzam, o oficial deixa de rir e de brincar com as algemas. Olham-se muito sérios. Fanchu baixa a cabeça. O oficial, de novo, ri sem alegria e recomeça a brincar com as algemas. Desaparece finalmente. Fanchu levanta a cabeça e olha na direcção da janela, com ar aliviado.)

Lira – Ai, ai ! Porque é que me largaste?

Fanchu – Escorreguei. Magoaste-te, minha gatinha?

Lira – Caíram mais pedras em cima de mim. Ai!

Fanchu – Perdoa-me!

Lira – Não posso contar contigo.

Fanchu – Claro que podes. Vou fazer-te uma surpresa : um presente.

(Fanchu tira do bolso um cordel e um balão azul. Enche o balão e ata-o prendendo uma pedra na ponta do cordel.)

Fanchu – Agarra a pedra que te vou atirar.

(Fanchu lança a pedra para o outro lado da parede.)

Fanchu – Agarraste-a ?

Lira – Agarrei.

Fanchu – Puxa pelo fio.

(Lira obedece. O balão fica por cima dela.)

Fanchu – Olha para cima. Vês?

(Ruído de aviões. Bombardeamento. Estrondear ensurdecedor. Entretanto, passam, da direita para a esquerda, a mulher e sua filha. Empurram um carrinho de mão. No carrinho, levam um caixote em que se lê «Dinamite». Ar irritado e impotente. Acaba o

bombardeamento.)

Fanchu – Minha gatinha! (Pausa) Minha gatinha...

(continua)

No comments: