Saturday, May 20, 2006

VIII

GUERNICA
(continuação)

Lira – Ai, ai. Já não posso mexer os braços.

Fanchu – Deixa lá, eu tiro-te daí.

Lira – As pedras já me chegam ao pescoço.

Fanchu – Não te rales. Vais ver que encontro uma solução.

Lira – Vou morrer.

Fanchu – Queres que chame o notário para o testamento?

Lira – Que testamento?

Fanchu – Não se diz assim?

Lira – Voltas ao mesmo?

Fanchu – (Lisonjeado) Devias fazer um, para eu mostrar aos vizinhos.

Lira – Só pensas em dar nas vistas.

Fanchu – Faço-o por ti. Todas as grandes senhoras o fa­zem. Devias preparar o teu testamento e as tuas últimas palavras.

Lira – Que últimas palavras?

Fanchu – As que se pronunciam antes de morrer. Queres que te dê ideias? Podias falar... (Reflecte e de­pois precipitadamente) da vida ou da humani­dade...

Lira – Cala-te, estás a dizer asneiras.

Fanchu – Chamas a isto asneiras? És muito frívola.

Lira – (Lamentosamente) Voltas a injuriar-me?

Fanchu – Não, minha gatinha.

Lira – Já não me posso mexer. (Lamentosamente) Quando acabará esta guerra?

Fanchu – Claro, Sua Excelência queria que a guerra aca­basse quando lhe agrada.

Lira(Choramingando) Não se pode acabar com ela?

Fanchu – Evidentemente que não. O general disse que não parava, enquanto não tivesse tomado tudo.

Lira – Tudo?

Fanchu – Tudo, claro.

Lira – Exagera !

Fanchu – Os generais não fazem as coisas por menos ou tudo ou nada

Lira – E as pessoas ?

Fanchu – As pessoas não sabem fazer guerras. De resto, o general tem muito quem o ajude.

Lira – Então não vale, assim não é lutar.

Fanchu – Que importância tem isso para o general ?

Lira – Já não me posso mexer. Se caírem mais pedras, vou ficar completamente soterrada.

Fanchu – Que chatice ! Deixa lá. Vais ver, os bomardeamentos vão acabar.

Lira – De vez ?

Fanchu – De vez

Lira – Como é que sabes?

Fanchu – (Espicaçado) Duvidas da minha palavra?

Lira – Não! (Céptica) Como queres que duvide?

(Rebentam três granadas. Estrondo aterrador.)

Çira – (Chorando copiosamente) Meu querido, estou completamente coberta, vem libertar-me.

Fanchu – Minha gatinha, vou imediatamente. Vais ver, tiro-te já daí.

(Fanchu aproxima-se. Penosamente sobe os escombros. Choro de Lira.)

Lira – Desta vez vou mesmo morrer.

Fanchu – Não percas a calma. Já aí vou.

(Fanchu avança penosamente, sobre as ruínas. Chega ao sítio onde está Lira.)

Fanchu – Minha gatinha, aqui me tens. Dá-me a tua mão.

Lira – Não vês que estou coberta de pedras?

Fanchu – Vou já libertar-te. Espera, vais já sair daí.

(Grande bombardeamento. Tornam a cair pe­dras. Fanchu também fica sepultado sob os escombros. Quando este longo bombardeamento está para acabar, a mulher passa da direita para a esquerda. A menina já não a acompanha. Leva ao ombro um pequeno caixão. Tem um ar irri­tado e impotente - Vide o quadro de Picasso - Desaparece à esquerda. Ao fundo, por entre as paredes desmoronadas, vê-se a árvore da liber­dade. O bombardeamento acabou: em cena, tudo ruínas. Longo silêncio. Do sítio exacto em que desapareceram Fanchu e Lira, elevam­se devagarinho dois balões de cor que sobem em direcção ao céu. Entra o oficial, que dispara a sua metralhadora sobre os balões sem os atin­gir. Os balões desaparecem no céu. O oficial torna a disparar. Vindos do alto, ouvem-se risos alegres de Fanchu e Lira. n oficial, assustado, olha para todos os lados e sai, precipitadamente pela direita.

Entra o escritor. Sobe para a mesa. Examina o sítio em que se encontravam Fanchu e Lira. Ar satisfeito. Desce da mesa. Sai pela esquerda, quase a correr, cheio de alegria.)

O Escritor – Vou fazer de tudo isto um romance espantoso. Um romance magnífico. Que romance!

(A sua voz perde-se ao longe. Pausa. Muito perto, ruído de botas de soldados em marcha. Ao fundo, baixinho, um grupo de homens canta «Guernikako Arbola». 0 grupo torna-se cada vez mais numeroso e as vozes cada vez mais fortes. É agora uma multidão que canta «Guernikako Arbola», até se sobrepor por completo ao ruído das botas, enquanto cai o pano.)

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