VI
(continuação)
(Bombardeamento. Aviões, bombas. Entretanto, da direita para a esquerda, a mulher e a filha passam, empurrando um carrinho de bebé cheio de munições. Cessa o bombardeamento. Longo silêncio.)
Fanchu – Minha Lira !
Lira – Hein ?
Fanchu – Porque não tiveste amantes?
Lira – Amantes? (Riso curto).
Fanchu – Sim, sim, amantes. (Ri-se. Cala-se).
Lira – Eu? (Riso curto).
Fanchu – Tu, claro.
Lira – Não tinha pensado nisso.
Fanchu – Nunca pensas em mim. Podia arranjar-te um milhão de exemplos. (Uma pausa) Devias ter tido ao menos um. (Reflecte) Um coronel.
Lira – Com que então, um coronel, e é assim que gostas de mim?
Fanchu – És uma antiquada.
Lira – Ainda por cima, insultas-me.
Fanchu – Não, minha gatinha. (Uma pausa. Teimoso) Mas todas as mulheres como deve ser têm amantes. (Uma pausa) Nunca me quiseste ajudar: quando te dispo, para que os amigos te acariciem, ficas sempre amuada.
Lira – Porque me constipo.
Fanchu – Encontras desculpas para tudo.
Lira – Só pensas em ti, és um egoísta.
Fanchu – Faço isso por ti. (Com ar satisfeito. Teve uma ideia) Hás-de escrever as tuas memórias, mais tarde.
Lira – Ai. (Uma pausa) As pedras recomeçaram a cair. (Geme) Já não posso mexer os pés.
Fanchu – Faz um esforço.
Lira – (Lamentosamente) Estão enterrados.
Fanchu – Realmente, as coisas começam a ficar feias.
Lira – E é tudo o que dizes. Nunca te preocupaste comigo.
Fanchu – Pelo contrário, estou muito desgostoso. (Bruscamente) Queres que chore?
Lira – Bem vejo o que pretendes: queres pregar-me mais uma partida.
Fanchu – Não, vais ver, se quiser posso chorar de verdade.
Lira – Conheço-te bem. É-te indiferente que eu morra.
Fanchu – Isso é o que tu dizes. Quando morreres... (Reflecte) hei-de-me deitar três vezes seguidas contigo.
Lira – Ainda te gabas.
Fanchu – Já te esqueceste?
Lira – (Cortando-lhe a palavra, em tom peremptório) Claro, claro, aquele tal sábado em que...
Fanchu – (Zangado) Depois vem-me dizer que eu é que não sou gentil contigo
(Ouve-se mais um desabar.)
Lira – Ai, ai (Queixa-se cada vez mais). Agora é que vou mesmo morrer.
Fanchu – Chamo um padre?
Lira – Que pouca memória tens : esqueces-te de que já não somos crentes?
Lira – Foste tu que decidiste. Já não te lembras?
Fanchu – (Que não se lembra de nada) Ah!
Lira – Disseste que seríamos (Uma pausa. Com ênfase) mais evoluídos.
Fanchu – (Surpreendido) Evoluídos? Nós?
Lira – Com certeza.
Fanchu – E agora estamos nesta triste situação, vais morrer e vais para o inferno.
Lira – Para sempre?
Fanchu – Claro, para sempre. E que suplícios! Vais ver como elas mordem. Ele é mestre nessas coisas.
Lira – Ele? Quem?
Fanchu – Ora, Deus.
Lira – Deus? (Riso curto)
Fanchu – Sim, Deus. (Riso curto. Riem os dois timidamente em coro.)
(Bombardeamento. Ruído de aviões e de bombas que rebentam. Passam, entretanto, da direita para a esquerda a mulher e a filha. A mulher leva às costas um saco cheio de munições várias. A pequena ajuda-a o mais que pode. O bombardeamento cessa.)
Lira – Ai, ai.
Fanchu – Que te aconteceu?
Lira – Nunca mais posso sair daqui.
Fanchu – Não percas as esperanças.
Lira – As pedras já me dão até à cinta.
Fanchu – Não te preocupes. Vais ver, vou encontrar alguma coisa para te tirar.
Lira – Realmente, não temos sorte.
Fanchu – A culpa é tua : essa mania que tens de ler na retrete. Passas aí horas e horas. O que te aconteceu não me espanta nada.
Lira – Sou eu sempre quem tem a culpa.
Fanchu – Não leves a mal, não quis magoar-te. (Silêncio)
(continua)
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