Thursday, May 18, 2006

VI

GUERNICA
(continuação)

(Bombardeamento. Aviões, bombas. Entretanto, da direita para a esquerda, a mulher e a filha passam, empurrando um carrinho de bebé cheio de munições. Cessa o bombardeamento. Longo silêncio.)

Fanchu Minha Lira !

Lira – Hein ?

Fanchu – Porque não tiveste amantes?

Lira – Amantes? (Riso curto).

Fanchu – Sim, sim, amantes. (Ri-se. Cala-se).

Lira – Eu? (Riso curto).

Fanchu – Tu, claro.

Lira – Não tinha pensado nisso.

Fanchu – Nunca pensas em mim. Podia arranjar-te um milhão de exemplos. (Uma pausa) Devias ter tido ao menos um. (Reflecte) Um coronel.

Lira – Com que então, um coronel, e é assim que gostas de mim?

Fanchu – És uma antiquada.

Lira – Ainda por cima, insultas-me.

Fanchu – Não, minha gatinha. (Uma pausa. Teimoso) Mas todas as mulheres como deve ser têm amantes. (Uma pausa) Nunca me quiseste aju­dar: quando te dispo, para que os amigos te acariciem, ficas sempre amuada.

Lira – Porque me constipo.

Fanchu – Encontras desculpas para tudo.

Lira – Só pensas em ti, és um egoísta.

Fanchu – Faço isso por ti. (Com ar satisfeito. Teve uma ideia) Hás-de escrever as tuas memórias, mais tarde.

Lira – Ai. (Uma pausa) As pedras recomeçaram a cair. (Geme) Já não posso mexer os pés.

Fanchu – Faz um esforço.

Lira – (Lamentosamente) Estão enterrados.

Fanchu – Realmente, as coisas começam a ficar feias.

Lira – E é tudo o que dizes. Nunca te preocupaste comigo.

Fanchu – Pelo contrário, estou muito desgostoso. (Brus­camente) Queres que chore?

Lira – Bem vejo o que pretendes: queres pregar-me mais uma partida.

Fanchu – Não, vais ver, se quiser posso chorar de verdade.

Lira – Conheço-te bem. É-te indiferente que eu morra.

Fanchu Isso é o que tu dizes. Quando morreres... (Reflecte) hei-de-me deitar três vezes seguidas contigo.

Lira – Ainda te gabas.

Fanchu – Já te esqueceste?

Lira – (Cortando-lhe a palavra, em tom peremptório) Claro, claro, aquele tal sábado em que...

Fanchu – (Zangado) Depois vem-me dizer que eu é que não sou gentil contigo

(Ouve-se mais um desabar.)

Lira – Ai, ai (Queixa-se cada vez mais). Agora é que vou mesmo morrer.

Fanchu – Chamo um padre?

Lira – Que pouca memória tens : esqueces-te de que já não somos crentes?

Lira – Foste tu que decidiste. Já não te lembras?

Fanchu – (Que não se lembra de nada) Ah!

Lira – Disseste que seríamos (Uma pausa. Com ênfase) mais evoluídos.

Fanchu – (Surpreendido) Evoluídos? Nós?

Lira – Com certeza.

Fanchu – E agora estamos nesta triste situação, vais morrer e vais para o inferno.

Lira – Para sempre?

Fanchu – Claro, para sempre. E que suplícios! Vais ver como elas mordem. Ele é mestre nessas coisas.

Lira – Ele? Quem?

Fanchu – Ora, Deus.

Lira – Deus? (Riso curto)

Fanchu – Sim, Deus. (Riso curto. Riem os dois timida­mente em coro.)

(Bombardeamento. Ruído de aviões e de bombas que rebentam. Passam, entretanto, da direita para a esquerda a mulher e a filha. A mulher leva às costas um saco cheio de munições várias. A pequena ajuda-a o mais que pode. O bombar­deamento cessa.)

Lira – Ai, ai.

Fanchu – Que te aconteceu?

Lira – Nunca mais posso sair daqui.

Fanchu – Não percas as esperanças.

Lira – As pedras já me dão até à cinta.

Fanchu – Não te preocupes. Vais ver, vou encontrar alguma coisa para te tirar.

Lira – Realmente, não temos sorte.

Fanchu – A culpa é tua : essa mania que tens de ler na retrete. Passas aí horas e horas. O que te acon­teceu não me espanta nada.

Lira – Sou eu sempre quem tem a culpa.

Fanchu – Não leves a mal, não quis magoar-te. (Silêncio)


(continua)

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