Wednesday, May 17, 2006

V

GUERNICA
(continuação)

(Ruído de aviões. Bombardeamento. Entretanto, a mãe e a filha atravessam o palco da direita para a esquerda, trazendo espingardas caçadei­ras. 0 balão de Lira rebenta. Cessa o bombar­deamento.)

Lira – (Lacrimosa) Rebentaram o meu balão.

Fanchu Que brutos ! Dispararam de qualquer maneira, sem apontar.

Lira – Fizeram de propósito.

Fanchu – Não, mas disparam sem apontar, sem cuidado nenhum.

Lira – Que brutos! Primeiro, destroem-nos a casa e agora, ainda por cima, rebentam-nos o balão.

Fanchu – São insuportáveis.

Lira – Vai ver se acertaram na árvore.

(Fanchu desce da mesa. Dirige-se à janela. Por trás dela, aparece o oficial. Fanchu olha-o. O oficial olha para Fanchu com ar grave. Fanchu baixa a cabeça amedrontado. Riso sem alegria do oficial, enquanto brinca com as algemas.0 oficial desaparece da janela. Fanchu levanta a cabeça. Não vê ninguém. Enfia devagar cr cabeça pela janela e olha para a árvore. Ar satisfeito. Risos atrás dele, à direita. Volta-se para a direita. O rosto trocista do oficial apa­rece e desaparece logo em seguida. Fanchu assustado já não sabe o que há-de fazer. Risos à esquerda, depois à direita, à esquerda, à direita, à esquerda à direita. Fanchu, aterro­rizado, queda-se, imóvel. O oficial entra pela direita. Ar grave e de quem observa. Parece muito preocupado com Fanchu. Não pára de o examinar, enquanto tira do bolso uma san­duíche embrulhada em papel de jornal e se põe a roer o pão. Coloca-se junto de Fanchu. Este afasta-se dele. O oficial torna a pôr-se a seu lado. Fanchu tenta fugir, timidamente. O oficial continua colado a ele, a um canto. Fanchu já se não pode mexer. Tem os olhos pregados no chão. O oficial barra-lhe a passagem, afastando os cotovelos. Enquanto o observa, o oficial con­tinua a rilhar tranquilamente o pão. Longo silêncio.)

Lira – Mas o que é que estás a fazer?

(Fanchu não se pode mexer. Não responde.)

Fanchu – E é isto, agora deixa-me sozinha.

(O oficial rói a sanduíche, impassível, sem lar­gar Fanchu.)

Lira – (Com ternura) Anda, meu amorzinho.

(O oficial deixa de comer e faz uma careta, como para rir, mas sem ruído. Mostra os dentes todos. Fanchu, envergonhado, baixa mais a cabeça. Depois, o oficial deixa de rir e come.)

Lira – Estás zangado? (Uma pausa) Pois bem, é ver­dade que conseguiste, naquele sábado. (Uma pausa) Estás contente?

(O oficial deixa de comer e faz uma careta como para rir, mas sem barulho: mostra os den­tes todos. Fanchu, envergonhado, baixa mais a cabeça. Depois, o oficial deixa de rir e come.)

Lira – Bem sei que tens sucesso com as mulheres... sobretudo com a padeira.

(O mesmo jogo. Depois, o oficial guarda com cuidado o que ficou da sanduíche; embrulha-a no papel de jornal. Limpa minuciosamente a boca com as mangas do casaco de Fanchu. Lim­pa as botas com as abas do casaco de Fanchu. Depois, volta-se e sai da sala pela direita, com ar marcial. Fanchu ri-se, todo contente, deita a língua de fora, empertiga-se com ar assustado. Olha para todos os lados. Certifica-se de que ninguém o pode ver. Deita a língua de fora e faz negaças. Ri-se, todo contente e trepa para cima da mesa.)

Fanchu – Minha gatinha, a árvore continua de pé.

Lira – Levaste este tempo todo a ver isso?

Fanchu – Gosto de fazer as coisas como deve ser.

Lira – Por acaso, não terás ido visitar a padeira?

Fanchu – Por quem me tomas? Estamos em guerra, como podes ver-me a procurar aventuras?

(continua)

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